No último dia do conflito entre a Índia e o Paquistão pela Caxemira, nasceu, das águas generosas do Jelum, aquela que estava destinada a sempre dar o próximo passo, o ímpar, aquele que faz toda a diferença numa vida medíocre. Sua mãe sonhou durante o parto e, juntamente com a bíli, vomitou o sonho com palavras estranhas. Quando por fim tudo acabou, a vida de Kantara deu seu primeiro grito.
O nome, escolhido pelo Pai, significa “portas do deserto”, uma homenagem às famosas gargantas a oeste de Aures que dão acesso a um belo oásis. Talvez, por demasiada realidade, a ironia se fez: suspirou a mãe, ao sentir na morte um alívio. Ao pai sobrou a sede, uma secura que a cada dia se faria em peles e ossos, o deserto da dor. Para Kantara sobrou a busca, o completar um nome que trazia promessas de frescor.
Entre saias estampadas de histórias, músicas que tocavam destinos irremediáveis e a dança dos homens ao redor da fogueira ela cresceu com um sonho reincidente, o de sua mãe sorrindo, doce e indomável.
Depois de lavar a roupa, moça de 21 anos, fez trança nos cabelos um pouco revoltados com o vento e com sua alma. Iria se juntar à família para partir rumo ao sul. O sol já tinha nascido fazia tempo e quis sentar-se para descansar. Pode ver sua sombra, no tamanho real, lhe observando da pedra. Kantara ficou imóvel de suto consigo mesma. Como se pudesse ser frágil, ou demasiado animal, iniciou uma conversa no silêncio com aquela sombra e assim que a lua nova brilhou nos seus olhos, já não havia música, nem amigos, nem pai, mas um grande corte, uma barreira erguida no seu espírito, uma falta que sem notar, a fazia correr em direção ao norte.
Durante meses a Natureza foi sua companheira. Kantara tinha raízes fortes amaciadas pela vivência de um mundo que hoje poucos podem [e querem] conhecer mas que resiste pelo simples fenômeno de conter todos os elementos e por estar acima da ignorância.
Quase muito tempo depois de viver na floresta dias felizes, harmônicos, meio parecendo de mentira, aconteceu uma batalha nesta história. Sangue o bastante [se é que existe suficiência diante da cegueira ]. O que houve mais eu não sei. Ou talvez, por hora, eu que não quero escutar. Nenhum dos dois? Ou, quem sabe? Todos já sentimos o bastante. Mas, há um detalhe que compreendo: foi uma luta com outra mulher. Mulher nem com maiúscula nem com minúscula: normal, ferida, cruel e bela. Feia também, porque fingia que sabia se gostar.
Com esse lapso saltamos para o agora. Quando possível, daremos uma pernada para trás e resolveremos este vazio – sem garantias de que o vazio deixe de ser o que sempre foi.
Bem, Kantara acredita estar próxima do Norte e que este a levará ao início do seu sonho(doce prisão).
(continua)
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